Começo da vacinação contra a covid-19 expõe a desigualdade econômica global

O fim da pandemia finalmente está à vista, assim como o socorro à catástrofe econômica global mais traumática desde a Grande Depressão. À medida que as vacinas contra a covid entram na corrente sanguínea, a recuperação econômica se torna realidade.

Mas os benefícios nem de longe serão repartidos igualmente. As nações ricas da Europa e da América do Norte garantiram a maior parte dos limitados estoques de vacinas, posicionando-se para destinos econômicos drasticamente melhores. Já os países em desenvolvimento – lar da maior parte da humanidade – se viram obrigados a garantir suas próprias doses.

A distribuição assimétrica das vacinas certamente irá piorar uma realidade econômica determinante: o mundo que emerge deste terrível capítulo da história será mais desigual do que nunca. Os países pobres continuarão a ser devastados pela pandemia, o que os forçará a gastar seus recursos escassos, já sobrecarregados por dívidas crescentes com credores nos Estados Unidos, Europa e China.

A economia global há muito é dividida por profundas disparidades em termos de riqueza, educação e acesso a elementos vitais, como água potável, eletricidade e internet. A pandemia exerceu seu poder de morte e destruição dos meios de subsistência sobre minorias étnicas, mulheres e famílias de baixa renda. Seu término provavelmente acrescentará mais uma divisão que pode moldar a vida econômica por anos, separando os países que têm acesso às vacinas daqueles que não têm.

“Está claro que os países em desenvolvimento, especialmente os países em desenvolvimento mais pobres, ficarão excluídos por algum tempo”, disse Richard Kozul-Wright, diretor da divisão de globalização e estratégias de desenvolvimento da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, em Genebra. “Apesar do entendimento de que as vacinas precisam ser vistas como um bem global, o fornecimento continua, em grande medida, sob o controle de grandes empresas farmacêuticas nas economias avançadas”.

Organizações de ajuda internacional, filantropos e nações ricas se uniram em torno da promessa de garantir que todos os países obtenham as ferramentas necessárias para combater a pandemia, como equipamentos de proteção para equipes médicas, testes, medicamentos e vacinas. Mas fracassaram em escorar suas garantias com dinheiro suficiente.

A principal iniciativa, a Parceria ACT-Accelerator – um compromisso da Organização Mundial da Saúde e da Fundação Bill e Melinda Gates, entre outros – angariou menos de US$ 5 bilhões de uma meta de US$ 38 bilhões.

Um grupo de países em desenvolvimento liderado pela Índia e África do Sul procurou aumentar a oferta de vacinas fabricando as suas próprias doses, de preferência em parceria com as empresas farmacêuticas que produziam as versões principais. Em uma tentativa de garantir a alavancagem, o grupo propôs que a Organização Mundial do Comércio (OMC) renunciasse às tradicionais proteções à propriedade intelectual, permitindo que os países pobres fizessem versões acessíveis das vacinas.

A OMC opera por consenso. E a proposta foi barrada por Estados Unidos, Grã-Bretanha e União Europeia, onde as empresas farmacêuticas exercem influência política. O setor argumenta que as proteções de patentes e os lucros que elas proporcionam são uma condição necessária para a inovação que produz medicamentos que salvam vidas.

Os defensores da suspensão de patentes observam que muitos medicamentos de sucesso chegam ao mercado por meio de pesquisas financiadas pelo governo, argumentando que isto cria o imperativo de colocar o bem social no centro da política.

“Na verdade, a pergunta é: ‘isto é hora de querer lucro?’”, disse Mustaqeem De Gama, conselheiro da missão sul-africana junto à OMC em Genebra. “Vimos governos fechando economias, limitando as liberdades – mas eles acham que a propriedade intelectual é tão sacrossanta que não pode ser tocada”.

Nas nações ricas que garantiram o acesso às vacinas, o auxílio ao desastre econômico provocado pela emergência de saúde pública está perto do fim. As restrições que fecharam negócios podem ser suspensas, trazendo benefícios econômicos significativos já em março ou abril.

Por enquanto, o quadro é sombrio. Os Estados Unidos, a maior economia do mundo, tem sofrido um número de mortes equivalente a um 11 de setembro todos os dias, o que faz com que o retorno à normalidade pareça distante. Economias importantes como Grã-Bretanha, França e Alemanha estão sob novos lockdowns, pois o vírus vem mantendo o ímpeto.

Mas, depois de contrair 4,2% neste ano, a economia global deve ter uma expansão de 5,2% no ano que vem, de acordo com a Oxford Economics. Essa projeção pressupõe um crescimento anual de 4,2% nos Estados Unidos e uma expansão de 7,8% na China, a segunda maior economia do mundo, onde a ação governamental controlou o vírus.

A Europa ficará atrasada, dada a prevalência do vírus, de acordo com a IHS Markit, com a economia do continente voltando ao tamanho anterior à crise só depois de dois anos. Mas um acordo fechado entre a Grã-Bretanha e a União Europeia na quinta-feira, preservando grande parte de sua relação comercial após o Brexit, acalmou os piores temores quanto uma desaceleração no comércio regional.

Mas, em 2025, o dano econômico de longo prazo da pandemia será duas vezes mais severo nos chamados mercados emergentes do que nos países ricos, de acordo com a Oxford Economics.

Muitos economistas presumem que, à medida que as vacinas aplacarem o medo, as pessoas correrão para experiências que ficaram proibidas, lotando restaurantes, eventos esportivos e destinos de férias. Cancelando férias e se divertindo em casa, as famílias economizaram durante este período.

“Se os receios das pessoas forem aliviados e algumas das restrições forem suspensas, poderemos ver um surto nos gastos”, disse Ben May, economista global da Oxford Economics em Londres. “Muito disso terá a ver com a velocidade e o grau com que as pessoas voltarem a ter comportamentos mais normais. É uma coisa muito difícil de saber”.

Mas muitos países em desenvolvimento se verão habitando um planeta totalmente diferente.

Os Estados Unidos garantiram contratos para até 1,5 bilhão de doses de vacina, enquanto a União Europeia bloqueou quase 2 bilhões de doses – o suficiente para vacinar todos os seus cidadãos e mais alguns. Muitos países pobres podem ficar esperando até 2024 para vacinar integralmente suas populações.

As altas cargas de dívidas limitam a capacidade de muitos países pobres de pagar pelas vacinas. Os credores privados se recusaram a participar de uma iniciativa de suspensão de dívidas patrocinada pelo G20.

A ajuda prometida pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional se revelou decepcionante. No FMI, o governo Trump se opôs a uma expansão dos chamados direitos especiais de saque – a moeda básica da instituição – privando os países pobres de recursos adicionais.

“A resposta internacional à pandemia foi, em essência, lamentável”, disse Kozul-Wright, do órgão comercial da ONU. “Nossa preocupação é que, à medida que avançarmos na distribuição das vacinas, veremos a mesma coisa se repetir mais uma vez”.

O braço da Parceria Act-Accelerator conhecido como Covax tem como objetivo possibilitar que os países pobres comprem vacinas a preços acessíveis, mas colide com a realidade de que a produção é limitada e controlada por empresas com fins lucrativos, as quais respondem aos interesses dos acionistas.

“A maioria das pessoas do mundo vive em países onde dependem da Covax para ter acesso às vacinas”, disse Mark Eccleston-Turner, especialista em direito internacional e doenças infecciosas da Universidade Keele, na Inglaterra. “É uma falha de mercado extraordinária. O acesso às vacinas não se baseia na necessidade. É baseado na capacidade de pagamento, e a Covax não corrige esse problema”.

Em 18 de dezembro, os líderes da Covax anunciaram um acordo com empresas farmacêuticas cujo objetivo seria fornecer aos países de baixa e média renda quase 2 bilhões de doses de vacinas. O acordo, que se concentra em vacinas candidatas que ainda não foram aprovadas, forneceria doses suficientes para vacinar um quinto das populações dos 190 países participantes até o final do ano que vem.