Útil ou necessário?

O que sobra de você quando a sua utilidade acaba? O que fica de você nos outros, quando você não é mais útil? Essa pergunta é meio perturbadora, né? Mas eu te convido hoje para refletir sobre ela.

Há muitos anos, quando eu ainda estava em começo de carreira, eu fui convidada a trabalhar numa escola cujas aulas seriam a partir das sete horas da noite. Aulas para o ensino médio, seria o meu primeiro desafio com turmas de segundo e terceiro anos. Eu estava receosa, mas ao conversar com o coordenador, ele fez por mim uma coisa que talvez ninguém ainda tivesse feito. Eu me senti como eu nunca havia me sentido, ele me deu voto de confiança.

Talvez eu ainda não tivesse sentido isso por parte de nenhuma outra pessoa até então, mas ele me deu esse voto de confiança e ele disse para mim que ali eu era necessária. Eu falei para ele de todas as dificuldades que eu teria para chegar no horário, que poderia acontecer de eu chegar tarde, porque eu me deslocaria de uma escola para outra de onde eu já teria passado o dia inteiro. Ele não quis saber e disse para mim que apesar de tudo isso ele sabia que valeria a pena, e valeu! Eu não sei se ele sabe da importância do que fez, mas isso foi muito necessário naquele momento.

Passado algum tempo esse coordenador deixou o cargo e uma outra pessoa o substituiu. Alguns dias após a nossa convivência, esse outro coordenador me disse que gostava de mim de graça. Essa frase ficou na minha cabeça por muito tempo, porque eu não conseguia entender, o que é gostar de graça. Como assim gostar de graça? A gente precisa pagar alguém para gostar da gente?

Sim, muitas vezes isso acontece! A gente acaba pagando as pessoas para gostarem de nós. Calma, eu vou explicar. Você não é o mercenário da sua própria amizade. O que eu quero dizer como “pagar para gostarem de nós” é porque tem gente que não necessariamente gosta do que a gente é, apenas gosta da nossa utilidade, da utilidade que a gente tem na vida delas. E aí que entra um grande problema. Eu não quero ser útil na vida de ninguém porque eu sei que dia as minhas pernas não andarão da forma como eu ando hoje e talvez não possa caminhar ao lado de ninguém. Meus olhos não enxergarão da forma como enxergo hoje e olha que eles já enxergam tão mal à noite.

Talvez eu não possa dirigir pra deixar nenhum amigo em casa, coisa que eu faço com imenso prazer no coração. Foi um casal de amigos que me ensinou isso, que a gente quando é agraciado, agracia os outros, com a nossa graça. Isso vai tornando uma cadeia, um grande elo sem fim, um elo de bondade. Eu sei que vai chegar o dia em que talvez eu não escute o que os meus amigos querem desabafar comigo. Vai chegar o momento em que a minha dicção talvez não seja tão boa, talvez eu não consiga ordenar as palavras na minha cabeça. E talvez eu nem consiga mais gravar um podcast que as pessoas hoje tanto dizem ser necessário. Sei que vai chegar o momento em que eu talvez não possa suprir isso. Talvez eu não possa me doar da mesma forma como eu faço hoje, que pode ser até tão pouco, mas é o meu máximo. Mas por falar em se doar, quanto você tem se doado para as outras pessoas?

Você conhece seus próprios limites? Você sabe até que ponto pode interferir? Até que ponto você consegue emergir no problema alheio? Por mais que a gente diga que não, mas amigos, nós escolhemos. Ou a química ou a conexão que nós estabelecemos com eles é uma coisa natural, algo incomum que te liga a ele, e as diferenças entre vocês, se completam como num quebra cabeça.

Essas diferenças, são o equilíbrio da relação que você estabelece. Os defeitos do amigo você tolera, os defeitos dos inimigos, ainda que sejam iguais aos dos amigos, são detestáveis. Fato é que quando nós escolhemos essas amizades, nós amamos compartilhar. Nós compartilhamos as frustrações, os sonhos, compartilhamos as amizades. Muitas vezes as inimizades, muitas vezes compartilhamos as nossas aflições, e compartilhamos alegrias.  Porque um amigo não pode ser uma espécie de abutre sobrevoando só as nossas desgraças esperando o momento certo de alimentar-se do que sobrou de nós.

Amigos muitas vezes são árvores barrigudeiras centenárias – eu li isso num livro no outro dia – e esses amigos estão ali para nos oferecer a sombra, por séculos. Outros, são apenas orquídeas que precisam se escorar em troncos, pra poder sobreviver. Ou seja, apenas utilizam da utilidade daquele tronco. Para ele, aquele tronco não é necessário, ele é útil. Útil porque saindo o tronco, e aparecendo outro cabo de vassoura, que seja, esse tronco será substituível. O necessário não é substituível, o necessário é único. Mas independente de você ter amigo barrigudeira ou amigo orquídea, é importante que você saiba que o problema dele é dele. Mas olha só, as pessoas precisam entender a responsabilidade que é jogar, sobre o outro amigo, o peso dos seus próprios problemas. E é preciso também que a gente amadureça e entenda que o que dá de errado na vida do outro amigo, não é nossa culpa.

O necessário não é substituível, o necessário é único.

Não foi por falta de apoio nosso, não foi por falta de avisos. Até porque a gente está ali pra se apoiar. Mas a gente não é dono da vida de ninguém. Os nossos amigos não são nossas marionetes. Mas há amizades que nos manipulam. Amizades que conseguem ser meticulosamente manipuladoras. Sabe aquela amizade que nossos pais conseguem sentir de longe o cheiro de problema? Pais tem um pouco de mediunidade, porque eu acho que existe um anjo que sopra os ouvidos deles, aquilo que eles têm que dizer pra gente. Eu acho que eles são um pouco de canal divino, uma espécie de telefone sem fio do céu para conosco aqui na terra. E como se as suas palavras fossem tão poderosas. É porque tem pais que quando abençoam, a bênção vem e quando tem momentos em que eles dizem que algo de ruim vai acontecer, é melhor se preparar e temer. Mas até que ponto uma amizade precisa se tornar cordão de duas dobras? Casamento eu sei que é algo que precisa ser vivido a dois, mas a amizade precisa respeitar os limites do espaço.

Eu preciso entender que por mais difícil que seja qualquer coisa pela qual eu esteja passando, o outro tem o seu próprio universo. O outro tem seus próprios fantasmas, ele tem seus próprios demônios, seus segredos aquilo que pra ele é urgente comunicar e ao mesmo tempo é obrigatório ficar guardado a sete chaves. E eu não tenho responsabilidade sobre o que acontece na vida do outro, mas como eu falei, há pessoas que manipulam e que jogam sobre nós a sua dor. E antes de comunicar a minha dor ao meu amigo é preciso entender se ele não tem a sua própria dor, a sua própria urgência. Se aquele amigo não está perdendo noites de sono, imaginando como vai pagar o boleto de uma conta que surgiu inesperadamente. Como é que ele vai arranjar o dinheiro para arcar os custos de tratamento de familiar que ele se comprometeu em ajudar? Eu preciso entender se aquele amigo não está passando por uma crise conjugal. Eu preciso entender se aquele amigo de repente não está passando por dificuldades no emprego, ou dificuldades financeiras, e ele só não quer me comunicar.

Cada um é um universo. Cada um tem seus próprios problemas e não é justo que eu no auge da minha fase adulta, não saiba como administrar a minha própria vida e deposite essa responsabilidade sobre o meu amigo. Ele não tem obrigação de me organizar. Não é certo que eu tire a noite de sono dele, que eu faça os cabelos dele caírem. Nossa, como isso é pesado, como isso é perturbador! Eu já passei por situações em que eu tive uma preocupação tamanha, esperando um sinal de uma pessoa que jogou seu problema sobre mim e simplesmente sumiu. E eu fiquei por horas, imaginando o que poderia ter acontecido, pra depois essa pessoa simplesmente ressurgir sorrindo em grupo de mensagens instantâneas, no qual nós duas estávamos, como se nada tivesse acontecido. Isso é doentio, isso é sádico! É querer uma atenção sem se preocupar em como o outro está se sentindo. Sem se preocupar se o seu amigo vai perder a noite de sono imaginando como resolver a sua dor, bolando maneiras de resolver o seu problema

Cada um é um universo. Cada um tem seus próprios problemas e não é justo que eu no auge da minha fase adulta, não saiba como administrar a minha própria vida e deposite essa responsabilidade sobre o meu amigo.

Pra esse amigo eu não sou útil! Pra esse amigo eu não estou sendo necessário! Para esse amigo, o que que tá sobrando? Útil, eu estou sendo quando não há outra companhia. Útil eu estou sendo, quando eu preciso confirmar a sua mentira. Eu sou útil quando eu preciso ser cúmplice. Útil quando eu posso ceder a minha casa, pra sei lá, você passar tempo enquanto espera a hora de ir para um compromisso muito mais interessante e escondido de mim. Pra – ora que coisa – não ser pego no flagra. Útil quando, eu posso te dar uma carona. Mas e quando essa utilidade acaba, o que é que sobra de mim?

O que que sobra de mim para o meu amigo aproveitar? Eu não quero que ele goste da minha utilidade, eu quero que o meu amigo goste de estar do meu lado quando as coisas estiverem boas. Eu quero compartilhar sorrisos, eu quero que a gente se sinta bem enquanto eu preparo almoço para ele. Eu quero simplesmente que ele venha almoçar do meu lado. Ele não precisa trazer nada não, apenas o sorriso, a presença e o prazer de se sentar à mesa. Porque sim, eu vou ficar muito satisfeita de te ver saboreando a comida que eu preparei, sentado na mesa que eu organizei. Eu quero que o meu amigo goste de fazer trajeto comigo, não porque está aproveitando a minha carona, mas sim a minha companhia.

Eu não quero ser útil eu quero ser necessário! Mas eu não vou me esforçar para isso, porque quem ama a gente, nos acha necessário. Não se preocupe em mover céus e terra para barganhar a admiração e respeito de ninguém, porque há pessoas para quem nos oferecemos oceano de amizade para mergulhar, mas elas preferem se afogar numa xícara de chá de sumiço.