A relativização do cansaço

“Ai, amiga, hoje estou tão cansada”.
“Ah, mas cansado todo mundo tá?”.
“Xiii, você pensa assim, é? Senta aí e me escuta”.

Tempos atrás, uma amiga me questionou acerca do meu olhar que, naquele momento, parecia cansado. Eu não desabafava com ela sobre certas situações que ocorriam comigo, mas ela teve a sensibilidade de me perceber. Eu digo “sensibilidade” porque, todos os dias, muitas pessoas nos olham, mas não nos enxergam. Algumas estão atarefadas demais, preocupadas demais. Não têm tempo para olhar para o outro. E é nesse quesito que muitas vezes a gente peca. Já parou pra pensar no quanto o cansaço é relativo? Pois é! Naquele dia, minha amiga olhou um cansaço que não tinha a ver com a quantidade de tarefas que eu executava. Eu até tinha uma carga horária menor do que eu tenho hoje. Eu estava, naquele momento, cansada de uma situação. Portanto, o meu cansaço não era físico, era um cansaço na alma. O meu cansaço só dependia de uma única coisa: coragem. Aquela, da qual nós já falamos por aqui. E eu tive!

Todos os dias, muitas pessoas nos olham, mas não nos enxergam.

Incrível como desde que eu fui em busca do meu tão sonhado descanso, algo se iluminou. Contando pra você agora, eu me imagino numa propaganda de Natal em que o bairro todo liga as luzes na tomada ao mesmo tempo, e tudo fica iluminado, mostrando a magia da época. Pois é! Agora, veja só: uma pessoa que não tem filhos, não precisa lavar cuecas do marido, não se ocupa em cuidar de pais idosos… cansada? Oh, gente, quando olho para as minhas amigas e colegas de trabalho, imagino como deve ser a vida delas cuidando do lar, dando conta de prazos, organizando as contas de casa, lanche da escola, almoço, uniforme… mas, ainda assim, executando seus ofícios, com tanta excelência, eu me sinto tão desleixada! Porque eu não vivo nada disso, mas eu estou, neste momento, calculando, se é menos cansativo lavar o cabelo agora ou acordar mais cedo amanhã pra fazer isso. Eu nem cogito ir com ele sujo, porque eu já vi o vídeo da Márcia Sensitiva, e não tem cansaço que me faça ir com um cabelo oleoso e fedorento pro trabalho. Mas, e se eu tivesse a rotina das minhas colegas? O que seria maior: o meu cansaço ou a minha vaidade?

Agora, veja só: uma pessoa que não tem filhos, não precisa lavar cuecas do marido, não se ocupa em cuidar de pais idosos… cansada?

Outro dia, vi uma amiga postar sobre as pessoas questionando sobre seu cansaço. Isso porque a forma, como ela descansa, é pedalando, acampando, fazendo trilhas, aventurando-se por aí. Com que direito as pessoas interferem no descanso de outra? Minha amiga trabalha a semana inteira em um escritório de contabilidade, mal vê a cor do céu, mal pode levantar. Vai ver até sonha com o leão que ela precisa matar todos os dias, a Receita Federal. Ela é apaixonada por natureza, liberdade, vento no rosto. Sim, ela precisa é dar descanso para essa cadeira que segura esse bumbum aí o dia todo e olha para o selim da bicicleta e diz: “é parceiro, agora é sua vez”, num constante apólogo de final de semana. Você percebe? Para quem pouco se mexe, o descanso é movimento.

E por falar em movimento, imagina o cansaço de uma pessoa hiperativa. Eu, por exemplo, tenho uma mente que não me deixa descansar. Eu já escrevi um roteiro de filme e acordei com frase de feito, que ficou ecoando na minha mente o dia inteiro. Já resolvi polinômios e, quando acordei, fui lá tentar fazer o mesmo, e, para a minha surpresa, os polinômios dos sonhos estavam completamente corretos. Eu já sofri com o sonambulismo. Atravessei ruas dormindo. Que coisa! Na hora de parar eu resolvo trabalhar, caminhar por aí, dormindo?

Mas eu já ouvi, quando eu reclamei de cansaço, que cansado todo mundo está. Acontece que eu não sou todo mundo, mas eu sou o mundo inteiro para quem me ama. Há dias em que eu estou cansada, de não ter perspectiva sobre o dia, e isso faz com que eu me mexa. Tem dias em que eu estou cansada de catar fios de cabelo pela casa. Isso me inquieta, me angustia. Tem dias em que eu estou cansada de lutar com a minha mente, pedindo para que ela pare só um pouquinho, e me deixe desacelerar e descansar. Você não sabe o quanto é difícil viver na própria cabeça, quando ela é o motivo do seu cansaço. Se acordo cedo no final de semana, em vez de aproveitar para dormir, me culpo por não ter descansado. Se acordo tarde, em vez de acordar cedo para aproveitar o dia, me culpo por não ser produtiva. Que dilema! Algum terapeuta online aí?

Mas eu já ouvi, quando eu reclamei de cansaço, que cansado todo mundo está. Acontece que eu não sou todo mundo, mas eu sou o mundo inteiro para quem me ama.

E olha só, que paradoxal: é preciso que eu me canse, me exercitando para que eu tenha mais disposição física. Quanto mais eu me acomodo, mais cansada fico para executar tarefas simples do dia a dia. É difícil opinar sobre o cansaço do outro, mas, mesmo assim, há quem tente. Mesmo que você e uma outra pessoa desempenhem a mesma função, isso não significa que o grau de cansaço de ambos tem que ser o mesmo. Existe, por algum acaso, algum cansômetro para medir o cansaço alheio? Há dias em que simplesmente não fazemos nada, mas nos sentimos cansados emocionalmente. Tem gente que nos cansa, só de ouvir. Tem gente com as quais basta que nos encontremos para que nossas energias sejam sugadas. Cê acredita nisso, de gente que suga as energias dos outros? Bom, eu acredito! Assim como acredito que tem gente que nos reinicia, gente que nos recarrega, sorrisos que reconfiguram o nosso sistema, abraços que nos energizam! Eu sinceramente, no meio de toda a correria e cansaço de uma sociedade que hoje, para piorar tudo, inventou os vídeos shorts e áudios em velocidade 2X, refiro ter por perto pessoas que não me suguem tanto, que não me desestabilizem. Gente que parece parada no tempo, que não acompanha o ritmo das transformações do mundo. Dá para ser tradicional, sem ser retrógrado e antiquado. Mas não significa que eu não estarei aqui para o amigo cansado, seja o amigo que precisa dividir as tarefas para que se tornem menos pesadas, cansativas. Seja o amigo que precisa dividir o peso que carrega numa mudança ou o peso da academia, subindo uma escada, ou mesmo, o peso da vida, o peso das dores.

Eu quero todos os dias aprender a ter a sensibilidade da minha amiga que enxergou meu cansaço. Enxergar o cansaço de quem precisa aliviar-se e descansar conversando. Que não nos cansemos de ser para o outro o suporte, quando o peso das lágrimas cansarem. E que o outro não seja um peso, porque todos estamos cansados, mas nossos cansaços não são iguais. E que aprendamos a, quando cansados, descansar, sem culpa, em vez de desistir. Descanse…